Apelação Cível Nº 5010588-26.2024.4.04.7102/RS
RELATOR: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
RELATÓRIO
Trata-se de mandado de segurança impetrado contra o Gerente Executivo do Instituto Nacional do Seguro Social em Santa Maria/RS, no qual M. D. R. M., absolutamente incapaz, representado nos autos por sua mãe, tem por propósito obter ordem que determine à autoridade coatora a concessão de benefício assistencial ao portador de deficiência ( ).
Imediatamente após o ajuizamento, sobreveio sentença indeferindo a petição inicial, por inadequação da via eleita, declarando extinto o processo, sem resolução de mérito, nos termos dos artigos 10 da Lei nº 12.016 e 485, I, Código de Processo Civil (
).Irresignado, o impetrante apelou, referindo que o benefício deve ser concedido, já que ambos os requisitos foram reconhecidos administrativamente, a despeito de o indeferimento indicar a ausência de deficiência. Registrou que é portador de transtorno do espectro autista (TEA) e que o impedimento de longo prazo foi reconhecido, indicando documentos do processo administrativo e atestado médico que instruiu a inicial. Protestou pela reforma da sentença, a fim de que o benefício seja concedido desde 13/09/2024 (DER) ou, subsidiariamente, a sentença seja anulada para retorno à origem, a fim de que se dê regular processamento (
).Com contrarrazões (
), subiram os autos.O Ministério Público Federal manifestou-se em parecer (
), opinando pela concessão do benefício.VOTO
Considerações iniciais
O direito ao benefício assistencial, previsto no art. 203, V, da Constituição Federal, e nos artigos 20 e 21 da Lei 8.742 (Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS) pressupõe o preenchimento de dois requisitos: a) condição de pessoa com deficiência ou idosa (com mais de 65 anos) e b) situação de risco social, ou seja, de miserabilidade ou de desamparo.
O referido art. 20 da LOAS, com as modificações introduzidas pelas Leis 12.435, 12.470 e 13.146, detalha os critérios para concessão do benefício:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
§ 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
§ 2o Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 3o Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
§ 4o O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.
§ 5o A condição de acolhimento em instituições de longa permanência não prejudica o direito do idoso ou da pessoa com deficiência ao benefício de prestação continuada.
§ 6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2o, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS
§ 7o Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura.
§ 8o A renda familiar mensal a que se refere o § 3o deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.
§ 9o Os rendimentos decorrentes de estágio supervisionado e de aprendizagem não serão computados para os fins de cálculo da renda familiar per capita a que se refere o § 3o deste artigo.
§ 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.
§ 11. Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento.
A Lei 10.741 - Estatuto do Idoso, por sua vez, em complemento à LOAS, dispõe:
Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social - Loas.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
Em relação à criança com deficiência, deve ser analisado o impacto da incapacidade na limitação do desempenho de atividades e na restrição da participação social, compatível com a sua idade.
No que diz respeito ao critério econômico, o art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742, estabelecia que era hipossuficiente a pessoa com deficiência ou idoso cuja família possuísse renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo.
Todavia, ao julgar o REsp 1.112.557, representativo de controvérsia, o Superior Tribunal de Justiça relativizou o critério econômico previsto na legislação, admitindo a aferição da miserabilidade por outros meios de prova que não a renda per capita, consagrando os princípios da dignidade da pessoa humana e do livre convencimento do juiz:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(...) 4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente o cidadão social e economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.
(REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009)
Nesse sentido, tem-se adotado posição de flexibilizar os critérios de reconhecimento da miserabilidade, merecendo apenas adequação de fundamento frente à deliberação do Supremo Tribunal Federal, que, por maioria, ao analisar os recursos extraordinários 567.985 e 580.963, ambos submetidos à repercussão geral, reconheceu a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742 - LOAS, assim como do art. 34 da Lei 10.741 - Estatuto do Idoso.
Com efeito, reconhecida a inconstitucionalidade do critério econômico objetivo em regime de repercussão geral, cabe ao julgador, na análise do caso concreto, aferir o estado de miserabilidade da parte autora e de sua família.
Mais recentemente, a Lei 13.146 introduziu o § 11 no referido artigo 20 da LOAS, o qual dispõe que para concessão do benefício assistencial poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento.
Mérito da causa
A questão relativa à inclusão em situação de vulnerabilidade social foi reconhecida administrativamente (
, página 19), limitando-se a discussão à comprovação, de plano, por se tratar de mandado de segurança, quanto à condição de deficiente que ocasione o impedimento de longo prazo.No que é pertinente ao impedimento de longo prazo, de igual modo, tenho por comprovado, tanto pelo teor do processo administrativo (
, página 22), quanto pelo atestado médico que instruiu a petição inicial ( ). Observe-se que Miguel conta, atualmente, 8 (oito) anos de idade (18/01/2017), e, conforme destacou a psiquiatra, possui severas restrições decorrentes da doença da qual é portador. Confira-se (grifos no original):ATESTADO MÉDICO PSIQUIÁTRICO
Atesto, para os devidos fins que o paciente, M. D. R. M., portador do CPF sob. o nº 053.188.910- 63, nascido em 18/01/2017, se encontra em tratamento médico psiquiátrico, com diagnóstico sob. CID 10 F84.0; F41.1.
Apresenta fobia de chuveiro, de lavar o rosto, não gosta de usar roupas com gola e nem capuz. Possui alimentação bem seletiva. Dorme com a mãe, usa chupeta e mamadeira. Ainda faz uso de fraldas, pois, tem medo de evacuar e urinar em pinico/vaso sanitário. Apresentando discurso de cunho suicida, delírios de ruína, como por exemplo, morar na rua, fugir de casa.
Em uso das seguintes medicações:
-ESCITALOPRAM 10MG.
-RISPERIDONA 1MG.
Não há previsão de alta melhorada, devido à patologia Transtorno do Espectro Autista (TEA) ser congênita e crônica.
Saliente-se que a perícia administrativa acima mencionada está de acordo com o que consta do atestado, inclusive salientando como grave os fatores ambientais e moderada as atividades e participações, sendo que o indeferimento do pedido ocorreu por não terem enquadrado o transtorno do espectro autista como deficiência, o que precisa ser corrigido.
Não se trata, aqui, simplesmente, de rever a decisão administrativa, mas sim de corrigir evidente equívoco, pois a condição que Miguel apresenta lhe ocasiona o necessário impedimento de longo prazo.
Assim, há direito líquido e certo à concessão do amparo assistencial, desde a data de protocolização do requerimento administrativo, o que leva ao provimento da apelação.
Conclusão
Apelação provida para determinar a concessão do benefício assistencial ao portador de deficiência a partir da DER (data de protocolização do requerimento administrativo).
Dispositivo
Em face do que foi dito, voto por dar provimento à apelação, nos termos da fundamentação.
Documento eletrônico assinado por OSNI CARDOSO FILHO, Desembargador Federal, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40005031491v12 e do código CRC 9fdf72a3.
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Data e Hora: 25/04/2025, às 16:38:55